A Semana



A Copa do Mundo que não tinha o Messi.

O futebol sabe ser cruel, mas também produz finais felizes: Messi tem sua Copa do Mundo

Nenhum outro esporte se permite, num mesmo jogo, mostrar suas duas faces de maneira tão descarada. O futebol sabe ser cruel, sabe punir como nenhum outro com requintes de maldade. É possível, durante quase 80 minutos, ser claramente dominante, fazer dois gols, não ser incomodado, transformar o jogo numa contagem regressiva para que o melhor jogador de futebol deste século, enfim, viva o momento que pareceu destinado a nunca acontecer. Num gol, tudo se transforma: o que era ânimo vira medo de perder, o que era impotência vira energia, o jogo da tática e da estratégia sucumbe às emoções. No futebol não há mudança tática mais eficaz do que um gol.

Messi, a caminho de casa com o sonho realizado.

O futebol é tão desalmado que permite a seu maior e melhor embaixador nas últimas décadas ter a sensação de que o gol decisivo seria dele, já numa prorrogação agônica, recolocando a taça ao alcance dos dedos. Tudo para, minutos depois, o futebol tirar o que ofereceu. E no lance final avisar que a distância entre a glória e a desolação mais profunda pode ser uma perna aberta, elástica, a ponta da chuteira de um goleiro no lance final.

Mas nesta mesma jornada que teve beleza e o melhor tipo de caos que o futebol pode produzir, o jogo mostrou que é capaz de construir uma história perfeita, fazer acreditar que a vida pode ser mesmo bela e que grandes dramas podem ter finais felizes. A quinta Copa de Messi, aos 35 anos, talvez fosse a mais improvável para ele. O jogador que dominou o esporte por quase 20 anos, que redefiniu padrões de excelência, uniu através de seu jogo, terminaria por ser premiado na última chance, no último pênalti, no último chute do último jogo de sua trajetória em Copas do Mundo. Claro que um jogo de futebol tem dois lados, e ambos podem querer e merecer ganhar. Mas, após o pênalti batido por Montiel para fechar a série, era como se o certo tivesse acontecido, um final feliz como nos melhores roteiros. Messi campeão do mundo.

No México em 86, sob o comando de Diego Maradona, a Argentina vencia o bi-campeonato, no Qatar foi Lionel Messi quem conduziu os hermanos ao tri

Foi como um acerto de contas do futebol com ele. O jogo devia algo assim ao grande gênio que as últimas gerações conheceram. Porque Messi conseguiu ir além do craque, do goleador, do driblador, do passador, do inventor de espaços, de um superdotado capaz de caminhar em campo enquanto decifra o que se passa à sua volta. Messi se tornou um ídolo global dispensando as declarações de efeito, os golpes midiáticos, a autopromoção vaidosa. Em torno dele, não há divisões. É difícil não gostar de Messi. O Brasil viu, neste domingo, muita gente esquecer rivalidades porque era impossível não sorrir apenas pensando na hipótese de vê-lo erguer a Copa do Mundo. O futebol de Messi une. Ele cativa através das histórias que escreve com a bola nos pés. Nos últimos 50 anos, ninguém fez tanto para que tanta gente se apaixonasse pelo jogo. Não houve, por meio século, um embaixador do futebol como Messi. O futebol lhe devia algo.

Pois este jogo impiedoso e sem coração, quase permitiu que um homem assim não tivesse uma Copa do Mundo para chamar de sua. O drama, escrito ao longo de cinco Copas, terminou neste domingo no Catar, na última chance.

Houve quem se perguntasse como era possível que, após tudo aquilo, Messi estivesse com uma expressão serena, vagando pelo campo ao lado da família. Nestas horas, costuma ser recomendável recorrer a Jorge Valdano, que além de saber exatamente como é fazer gol numa final de Copa do Mundo, tem a rara sensibilidade de mergulhar na alma de quem vive o futebol dentro de campo. Na véspera da decisão, Valdano foi perguntado sobre a sensação de ser campeão do mundo e fazer um gol na final.

  • É quase uma má notícia. É saber que a felicidade tem limite. E quando este limite é ultrapassado, você pensa que “isso não pode estar acontecendo comigo”. É algo demasiadamente excepcional, um sonho muito grande para que aconteça comigo.

É outro aspecto cruel do futebol, do esporte, da vida. Como se houvesse um limite para desfrutar de um sonho realizado, um tempo para assimilar uma dose tão grande de felicidade. Já a derrota machuca, fere, é como um golpe capaz de destruir de uma só vez.

O brilho no olho…

Messi viveu tantas vezes a face dura de uma sociedade que, como disse o técnico Luis Castro no jornal O Globo, vai do endeusamento ao utilitarismo. Eleva as expectativas em torno de um esportista até torná-lo escravo das nossas patologias, da nossa vulnerabilidade diante das frustrações: se o ídolo não nos entrega vitórias, esta mesma sociedade o desqualifica.

Messi foi menos argentino, menos corajoso, menos capaz de “sentir a camisa” enquanto não ergueu uma taça pela seleção. Porque não se tratava apenas da sua luta para ganhar pela Argentina. Havia o duro contexto de um país que encerrou neste domingo 36 anos sem ganhar uma Copa e que, até 2021, ficara 28 anos sem qualquer troféu. Em dado momento, a seleção foi um fardo, a ponto de fazê-lo desistir. Até aparecer no Catar um homem que parecia liberado das pressões, que jogou pela glória como se não existisse mais o fantasma da derrota. Aquele Messi sereno, mas que não abandonava o campo como se quisesse estender ao máximo uma jornada de sonhos, talvez ainda nem tivesse começado a assimilar, pouco a pouco, o tamanho do que acabara de construir.

Se hoje Messi está mais liberado de ações defensivas, há dez anos o então craque do Barcelona foi definido por Guardiola como o melhor defensor do mundo. Para o catalão, Messi era tão bom que, se fosse escalado de lateral-esquerdo, seria tão bom quanto jogando de Falso 9, porque é capaz de ser “o melhor defensor do mundo”. Messi nunca precisou de adornos desnecessários, fez do drible, do passe, da condução da bola instrumentos para chegar ao gol o mais rapidamente possível. Nos últimos 15 a 20 anos tem sido o melhor atacante, o melhor criador, o melhor driblador, o melhor passador. Messi é todos os jogadores em um. E no Catar, aos 35 anos, conseguiu ser cada um deles. E conseguiu ser alguém que, dentre tantas virtudes, mostrou-se capaz de desafiar o tempo. Fez da quinta Copa a sua melhor, mostrou sua melhor versão numa etapa da carreira em que outros já viveriam o ocaso.

Hoje, é natural que se tente dimensionar o lugar de Messi em meio aos grandes gênios da história de jogo. Das memórias afetivas às visões de mundo, passando pelas transformações da sociedade e do próprio futebol, trata-se de um exercício ingrato. O fato é que, aos 35 anos, Messi continua dando argumentos a quem lhe dá licença para sentar à mesma mesa dos maiores nomes que o futebol já testemunhou. Perguntado se não era mais saudável para de comparar Messi com Maradona, Valdano, outra vez, mostra-se indispensável.

  • Seria uma boa ideia… Mas Messi não ajuda
Gustavo Lourenço

Comunicador, Radialista, Criador de Conteúdo, Pai de 5 e ainda me sobra tempo pra sofrer pelo meu time.

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